sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A crise e os neomercantilistas




O rápido processo de contágio da economia brasileira pela crise internacional que se originou nos Estados Unidos permitiu que enxergássemos com maior clareza como atuam os grupos de pressão na sociedade brasileira e como setores do governo e da sociedade veem o comércio internacional. Como sabemos, assim que os primeiros dados da balança comercial de janeiro foram divulgados, mostrando números negativos, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) estabeleceu a exigência de licenças para importação de vários produtos, alegando a necessidade de monitoração dos dados da balança. Felizmente, esta medida foi revogada pelo presidente Lula, que rapidamente verificou seu absurdo, mas os erros de concepção e implementação foram tantos, e tão grandes, que vale a pena discutir o contexto em que decisões como esta são tomadas.

Parece que uma parcela da equipe econômica do governo se rendeu às praticas do livre mercado, mas ainda não se convenceu dos seus reais benefícios. Em termos do comércio internacional, por exemplo, estes setores ainda têm uma visão mercantilista das coisas. O mercantilismo é o nome dado a um conjunto de políticas econômicas predominantes na Idade Moderna na Europa, entre os séculos XV e XVIII, que preconizava o desenvolvimento econômico por meio do enriquecimento das nações, graças fundamentalmente ao comércio exterior. O governo tem papel primordial nesta visão do mundo e deve adotar políticas protecionistas, fortalecer o mercado interno, estimular práticas monopolistas, estabelecer barreiras alfandegárias para diminuir as importações e definir medidas de apoio à exportação. A ideia era obter uma balança comercial favorável, ou seja, exportar mais do que importar, a qualquer custo, para que a entrada de ouro e prata fosse superior à saída. O excedente comercial estava acima de tudo.

Aos poucos, as ideias mercantilistas foram caindo em desuso, pois as pessoas começaram a perceber que elas não faziam muito sentido, pois mais importante que o acumular ouro e prata por meio de excedentes comerciais era aumentar o bem-estar das pessoas que vivem nos países. Logo depois surgiu a teoria das vantagens comparativas, que diz que o comércio internacional não é um jogo de soma zero, onde os ganhos de um país equivalem às perdas do outro. Na verdade, todos podem se beneficiar com o comércio internacional, na medida em que ele permite que os países se especializem na produção e exportação das mercadorias que conseguem produzir mais eficientemente. Ou seja, se o Brasil for mais produtivo na produção de soja do que na produção de computadores, e nos Estados Unidos ocorrer o contrário, seria mais interessante que o Brasil utilizasse todos os seus recursos para produzir soja e utilizasse o dinheiro obtido com a exportação de soja para comprar computadores dos EUA. Com a abertura comercial, as pessoas que trabalhavam fabricando computadores ineficientes passariam a trabalhar na produção de soja. Desta forma, o comércio internacional faz com que os países fiquem mais ricos e que as pessoas possam consumir produtos mais baratos do mundo todo.

A impressão que se tem é que vários segmentos da sociedade brasileira, incluindo o governo, gostariam que o Brasil tivesse saldo comercial positivo em todos os setores da economia. Essas pessoas ficam muito preocupadas quando o valor das importações supera o das exportações em algum setor, achando que deve haver algo errado com esse setor. Esquecem que o Brasil nunca conseguirá produzir eficientemente todas as mercadorias em todos os setores. Isto nos remeteria de volta aos anos 70 e 80, quando não tínhamos acesso a quase nenhuma mercadoria importada e pagávamos caro por produtos nacionais ultrapassados.

Outro aspecto muito interessante nesse processo é a atuação dos grupos de pressão (lobbies). No próprio dia do anúncio das licenças, representantes da Fiesp e do setor automobilístico negociavam diretamente com o MDIC os setores que ficariam isentos das licenças e que prazos seriam mais apropriados para a nova política. Os representantes empresariais anunciavam aos quatro cantos que, devido à crise internacional e à falta de mercados nos países desenvolvidos, a China iria tentar obter escoamento dos seus produtos a qualquer custo no Brasil, o que destruiria empregos locais e acabaria com nosso saldo comercial. A imagem propagada era a de que os chineses seriam os nossos grandes inimigos, esperando qualquer oportunidade para acabar com as nossas empresas e destruir empregos. Claro que isto não tinha qualquer apoio nos fatos. Como foi visto logo em seguida, as importações de produtos chineses pelos brasileiros diminuíram com relação ao passado recente, ao invés de aumentar. O que não era de se surpreender, dado que a moeda brasileira se desvalorizou em cerca de 40% nos últimos seis meses, o que deixou os produtos chineses bem mais caros no Brasil.

Na verdade, um livro lançado recentemente por economistas do Banco Mundial discute os impactos do crescimento da China e da Índia sobre as economias latino-americanas ("China's and India's Challenge to Latin America: Opportunity or Threat?"). O livro mostra, por meio de um conjunto de ensaios produzidos com técnicas estatísticas sofisticadas, que, longe de uma ameaça, o crescimento desses dois países tem produzido oportunidades imensas para as economias latino-americanas. Segundo o livro, não há evidências de que as exportações chinesas e indianas substituíram as exportações dos países latino-americanos e há fortes indícios de que a maior disponibilidade de insumos mais baratos produzidos e exportados por esses países tem beneficiado sobremaneira o processo produtivo de países como o Brasil.

Em resumo, não devemos estranhar que a Fiesp e outros grupos de pressão empresariais defendam seus interesses corporativos, afinal este é o seu papel. O que é de se estranhar é que o governo não enxergue que esses interesses nem sempre coincidem com os da sociedade brasileira e que ceda tão facilmente a estes grupos de pressão. Precisamos resolver isto antes que voltemos aos tempos mercantilistas.

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